Conforme prometido aqui fica o texto do escritor Joaquim Lagoeiro sobre o Referendo
Inevitável, o Aborto Clandestino?
O título estava para ficar só por “O Aborto”, tal como o do senhor Joli Marinhões inserto neste periódico em 15 de Dezembro. Demoveu-me disso a ideia de que, se lhe respondesse, só polemizando, quando na verdade não posso senão estar mais de acordo naquilo que muitos contestarão. Estes que o façam, mas, cuidado!, afinem bem a pena se lhes estiver ao alcance, que a do senhor é apurada. Se não estivesse de acordo, responder-lhe-ia com o respeito devido a quem, não só sabe o que diz, mas ainda, e sobretudo, como diz. As opiniões discordantes hão-de ser ouvidas e respeitadas, ainda que não aceites, condição de diálogo, que é a escada que pode levar à verdade. Mas eu estou de acordo em tudo. De certo modo até na evolução do pensamento, desde a crença do pecado mortal, castigado por um Inferno que em tempos era de reais chamas eternas, até a uma abertura de alma de quem propõe como remédio “erradicar da lei positiva a classificação de crime punível”. Estamos a falar do aborto voluntário. Se se quer punir, então não seja só a mulher, também o seu cúmplice na prenhez se também o for no desfecho. Aí está, e bem. Faça-se então o referendo com que em princípio não estou de acordo por duas ordens de razão: 1º - se é legislável, faça-se a lei no lugar próprio, a Assembleia da República; 2º - não pode nem deve ser objecto da demagogia, que é a essência do referendo, em que vale tanto o iliterato como o sábio, quando infelizmente entre nós é maior a massa dos não informados. Daí que a um artigo anterior neste jornal chamei “O Último Reduto”. Numa guerra, a parte que se sente perdida entrincheira-se onde se julga mais forte; no caso vertente, referia-me à Sacristia com a sua cortina de fumo, a dita defesa da vida por quem, segundo o catecismo de João Paulo II, 1ª edição, aceitava a pena de morte, na continuidade duma tradição milenar do seu desprezo. Aqui têm os pretensos defensores da vida a sua força, a demagogia de utilizar o argumento em que todos estão de acordo, que é o de aborto objectivamente causar a morte. Não há volta a dar-lhe. Joga a Sacristia com isso, com as armas que tem, tripudiando sobre a crença de cada um com a cominação do pecado mortal. E como não compreender a aceitação disto por quem, e são muitos, desde a catequese o interiorizou e fez seu no subconsciente? Legislar sobre o assunto implica razão fria, não paixão quente. Para este campo desviam os incautos a atenção do que está em causa. Volto a dizer: não creio que mulher nenhuma normal e bem formada pratique sobre si tal violência, só circunstâncias especiais que só ela julgará a poderão levar a tal desespero. Estas, as circunstâncias, como o sabem os moralistas encartados, é que decisivas para o que chamam pecado e que os juristas, crime.
Posto isto, ou como se diz em Filosofia, posto o estado da questão, vamos ao de que na verdade se trata, o que subjaz à tal nuvem de fumo de defesa da vida: o referendo é por causa do remédio a dar ao flagelo do aborto clandestino. Segundo um estudo da bióloga Ana Nunes de Almeida, apresentado há dias na Maternidade Alfredo da Costa, 350 mil mulheres em idade fértil já interromperam voluntariamente a gravidez. Isto o apurado; sabemos que o silêncio é o véu da vergonha: haverá muitas mais. Só vêm à tona do público os casos que caem sob a alçada da lei, como o de Aveiro em que polícias, sujeitando-se a um papel que não é o seu, espiaram uma clínica suspeita. E foi o que foi – para vergonha dos que ainda a têm. No último referendo bateram-se pelo não, como amanhã se baterão, os interessados em clínicas clandestinas, pelo medo de verem por água abaixo o seu negócio. Como dar cobro, ou pelo menos minorar, as consequências do flagelo? No referendo pergunta-se a opinião de cada um a respeito do remédio proposto: despenalizar o aborto se feito em clínicas públicas e até às dez semanas. Remédio amargo, não de todo curativo, mas o possível. Terá o mundo de dar muitas voltas até que a vida dos que cá estão mereça o nome, e sem abortos. O Governo Sócrates escolheu a pior via, na minha opinião para o perder, na esteira do seu mestre Guterres. Li há dias no “Público” que em França deixou de haver praticamente aborto clandestino desde que a interrupção voluntária foi permitida por lei, o que medem pela ausência de casos graves nos hospitais. Para que o mesmo aconteça cá é que, sendo contra o referendo, votarei sim.
Lisboa, 15 / 12 / 06
Joaquim Lagoeiro
fonte: "o Jornal de Estarreja de 02-02-2007"
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